É final de tarde, sexta-feira, e chove. As árvores estão encharcadas e a estradinha de barro acumula enormes poças d'água capazes de afundar um pé por inteiro. O dia se vestiu como todos nós aqui; preto-cinza, em memória desse dia. Como nós, as nuvens derramam suas águas em gotas finas e penetrantes. Nada mais natural. Sobram cumprimentos, abraços, lamentações e pêsames. O reverendo se retira com sua família em um bonito carro preto após seu lindo sermão fúnebre e se despede acenando com seu chapéu. Outros vão a pé e cabisbaixos, sussurrando entre si. As crianças brincam nas poças e balançam os galhos das árvores.
Eu decidi ficar, eu e minhas lembranças. Me pergunto como posso superar essa perda. Perder você assim, depois de te ter durante anos ao meu lado vencendo todas as nossas desavenças e intrigas com o fôlego da nossa paixão. Vivemos a vida que sempre quisemos, sem muitas intervenções alheias, livres. O encanto do nosso romance não se foi com o tempo, como esperavam. Era diferente! O meu carinho por você não diminuía, a minha paciência não se esgotava, o meu zelo por você ardia incessantemente. Todas as manhãs você alimentava essa chama, diligentemente. Mais que uma esposa, você era amiga e companheira. Conversávamos por horas a fio, ríamos tanto a ponto de cansar os músculos. Coisas tão triviais tinham um valor tão grande com você.
Vencemos as críticas feitas por causa da nossa diferença de idade, nossa personalidade, nosso modo de vestir.
Com meus 85 anos, apoiado sobre uma bengala, vestindo um terno preto e uma camisa branca, fiz questão de calçar o meu all-star. Fiz para lembrar das nossas aventuras, dos nossos gostos tão parecidos. Ainda me recordo do dia em que você foi à faculdade me visitar. Terça-feira, 18 de Novembro de 1990. Em minha mente, é como se fosse hoje. Era fim de semestre e eu só teria uma aula durante o dia, das 15 as 17. Enquanto eu ia em casa almoçar você me ligou dizendo que iria me ver. Eu me assustei, e pensei instantaneamente que você não seria capaz de encontrar o lugar. Mas você sempre foi assim, determinada, impulsiva, cabeça-dura e esperta.
Eu tratei de lhe dar todas as coordenadas possíveis por mensagens no celular. O andar da faculdade, o departamento, o numero de portas que você deveria contar e a programação do horário. Como todas as outras vezes, eu estava ansioso. Não era a primeira vez que iria te ver, mas essa reação era inevitável, costumeira e agradável.
Já eram 17:30, e você não tinha chegado ainda. Decidi sair e até o pátio. Mas foi ao sair pela porta que dá no corredor da Universidade que, por coincidência, você vinha chegando. Você e aquele vestido laranja - meio hippie - sandálias rasteiras de couro, uma bolsa pendurada nos ombros e os cabelos enrolados presos por uma piranha transparente. Você estava suando, ofegante, segurando uma garrafa de água mineral nas mãos. Me contou o quanto tinha andado para chegar até ali porque, simplesmente, soltou no ponto errado e teve que andar cerca de dois quilômetros até me encontrar.
Eu te mostrei o banheiro e você foi retocar o brilho nos lábios e pôr um pouco daquele óleo de pimenta próximo ao pescoço.
Você sentou comigo no banco da universidade e me mostrou um livro que tinha pego na biblioteca, "Mistérios do Coração". Achei o título apelativo, mas não te falei nada. Então você me encorajou a ler alguns trechos. Comecei. Lia como um locutor, pausadamente e de forma empolgante. Voce recostou docemente em meu ombro e fechou os olhos, de pernas bem juntas apoiadas sobre o banquinho. Meu peito arfava. O escritor do livro falava de mim como ninguém tinha falado antes, e você sabia disso. No livro era a nossa história escrita por outrem. Nossos medos e receios, pensamentos e sentimentos. Li três capítulos inteiros, interrompido por beijos e carícias suas. Irresistíveis.
Parei de ler, e me dediquei a te olhar e te elogiar ininterruptamente. Nos abraçamos por longos minutos, um abraço de agradecimento, de despedida, de desejo, de carinho. Não sei bem dizer. Mas ficamos ali, por um bom tempo.
Decidimos partir e esperar o ônibus, e brincamos de escolher o que iríamos pegar. Esperamos durante duas horas, e sua mãe já tinha ligado preocupada perguntando onde você estava às nove da noite. Antes de você descer, confessei que a saudade só esperava você sair do alcance dos meu olhos para poder me acompanhar. Nunca quis de contar, mas no outro dia fui com a mesma camisa para a faculdade. Ela exalava você. Eu cheirava o colarinho, os ombros sem parar. Fechava os olhos enquanto o fazia, então voce aproveitava e aparecia na minha mente sorrindo seu sorriso perfeito.
Quero apenas ser tocado pela chuva enquanto vejo as flores sobre o local de repouso da sua carne. Eu sempre lhe disse que era forte e dificilmente chorava, queria agora que você pudesse ver minhas lágrimas, enxugá-las com seus dedos únicos e me beijar antes de partir novamente.
Tenho apenas duas certezas. Da morte. E do amor que sentir por você, somente por você.
4 xícaras:
Fantástico. Lindo o seu romance, perfeita as suas palavras. Sua certeza é arrebatadora. Tenha certeza que ela ainda sente sua barba por fazer no último beijo doce que você a entregou.
Parabéns por toda sensibilidade!
Vou voltar para ler os seus relatos e me encher de amor! Essa canto exala amor. Não tem para onde fugir!
Que lindo! Quase chorei! Uma história de amor linda! Dá pra ver a intensidade desse amor, que me comoveu. Acho que nem mesmo a morte será capaz de separá-los!
[sumiu do orkut!]
Enquanto isso a saudade acompanha, até o momento em que ela o levar para perto da amada.
É que o amor exala além da vida.
Parabéns, muito bom!
Maloy, em 1990 já existia o celular? Hauuauaa! Brincadeiras à parte, muito bom esse seu jeito de tratar de recordações tão lindas. Uma coisa que admiro na geração dos nossos avós é a forma como eles tratam do próprio passado, como se vissem as lembranças passarem diante deles. Os olhos até brilham. Foi assim o seu texto. Parabéns! =***
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